quinta-feira, 29 de novembro de 2007

Currículo cultural: a pedagogia da mídia


Ana Carmita Bezerra de Souza
Doutoranda em Educação (UFC)
E-mail: acarmitabs@gmail.com


Já não é mais possível compreender a sociedade, desconsiderando a influência que a mídia tem sobre ela. O desenvolvimento tecnológico que ocorreu ao longo do século XX possibilitou que essa instituição alcançasse de alguma maneira todos os segmentos sociais, e assim se destacasse dentre as instituições tradicionais de formação humana (escola, igreja e família) na definição de identidades e comportamentos. Televisão, rádio, imprensa, indústria fonográfica, publicidade e Internet oferecem, de maneira ostensiva, uma infinidade de artefatos culturais em formato audiovisual que atuam diretamente na educação dos sujeitos contemporâneos.
Percebendo as transformações comportamentais ocasionadas pelo poder de influência dos produtos midiáticos, especialmente sobre crianças e adolescentes, pesquisadores da educação são estimulados a investigar coisas aparentemente distantes do mundo escolar: conteúdos de novelas, séries e minisséries, músicas, blogs, chats, filmes, desenhos animados, histórias em quadrinhos, brinquedos, outodoores, peças publicitárias, entre outros. A intenção é conhecer os efeitos causados pela cultura midiatizada nos educandos e no ambiente escolar, desvelando a atuação pedagógica e as intenções ideológicas da indústria cultural, normalmente atrelada aos interesses do sistema capitalista de consumo.
Currículo cultural e pedagogia cultural se referem respectivamente aos conteúdos e às ações pedagógicas da mídia que ao oferecerem produtos para o entretenimento estão forjando, de maneira sutil e eficaz, comportamentos, valores e atitudes condizentes com a manutenção do sistema. O currículo cultural é expressão da pedagogia do capital para formar consumidores e ampliar mercados. Sobre isso, Sabat (2001, p. 1) esclarece: “[...] muito mais do que seduzir o/a consumidor/a, ou induzi-lo/a a consumir determinado produto, tais pedagogias [...] produzem valores e saberes; regulam condutas e modos de ser; fabricam identidades e representações; constituem certas relações de poder.”
Os estudos sobre endereçamento colaboram para a compreensão da pedagogia cultural, ao esclarecerem que a elaboração dos produtos da mídia, como a de qualquer outra mercadoria, pressupõe sempre um destinatário. O objetivo principal das estratégias de endereçamento é conseguir a identificação do telespectador, fazendo com que ele encontre naqueles conteúdos “pedaços” da sua vida, ou que incorporem à sua vida “pedaços” daqueles conteúdos. É assim que além do entretenimento, e através dele, os produtores da mídia ensinam aos seus consumidores: modos de ser, de se comportar, de viver e de posicionar-se politicamente, reforçando determinados padrões sociais, culturais e econômicos, através de uma pedagogia afetiva, envolvente, interpeladora e persuasiva que atua de forma repetitiva, porém implícita.
Tomando como exemplo o currículo cultural da série Malhação, apresentada na Rede Globo de Televisão, de segunda a sexta, desde abril de 1995, constata-se nos seus conteúdos audiovisuais a elaboração de um discurso dedicado especialmente à juventude. Isso é observável não somente na trama, mas em detalhes da produção como: trilha sonora, figurino, idade dos atores e cenários. A Malhação é organizada em um formato similar aos das telenovelas, contando inúmeras histórias de amor em períodos anuais. A cada ano encerra-se uma temporada e se inicia outra, com a substituição de quase todos os personagens, em sua maioria adolescentes. A mudança dos atores combina com a necessidade de manter a série com uma cara jovem, por mais que esta tenha começado há mais de 12 anos atrás.
Na temporada de 2006, já na abertura era apresentado um clip com duração de 55 segundos, mostrando todos os personagens em um movimento interativo embalado com o ritmo da música Lutar pelo que é meu da banda de rock Charlie Brown Jr. Aquelas imagens em ritmo frenético eram marcadas pela presença de um colorido forte, pelo movimento e vivacidade dos personagens: uma composição de fácil identificação juvenil. O cenário principal nos últimos 8 anos é um colégio particular. Naquele espaço contracenam cerca de 40 atores, na maioria adolescentes em idade escolar – mais um importante elemento de identificação indistinta para a infinidade de telespectadores. Se normalmente o figurino de uma ficção serve para delinear aspectos psicológicos, culturais e sociais dos personagens, na Malhação, além de caracterizar estilos jovens de ser, confirma que aquela atração é uma vitrine das grifes da moda juvenil e seus atores têm também a função de top models – jovens com portes físicos magérrimos, ideais para a associação de produtos da moda.
Assim se corporifica um espaço educativo virtual – o fato de ser virtual ou televisivo não o torna menos real – que trata de inúmeras temáticas que normalmente fazem parte do cotidiano adolescente. As diversas “lições” de cada capítulo ora são objetivas, através de inúmeros merchandisings sociais, com a explícita intenção de formar opinião sobre temáticas relevantes como escolha profissional, DST/AIDS, entre muitas outras – dando soluções simplistas para problemas complexos –, ora se apresentam de maneira velada, mostrando nas entrelinhas do enredo, do figurino, e do cenário, os valores da juventude da classe média, branca, heterossexual como regra para todas as demais condições juvenis.
No enredo predominam as temáticas de amor, com vastas “lições” sobre sexualidade e gênero, mostrando formas de conquistas amorosas; comportamentos “adequados” em um namoro; e a reprodução da distinção entre os comportamentos sexuais masculinos e femininos. Assim, prega-se a heteronormatividade e a homogeneização das relações afetivas juvenis, independente das particularidades regionais e de escolhas sexuais.
A apresentação de personagens predominantemente jovens, brancos, esbeltos, de pele lisa, cabelos louros e dentes claros, vestidos invariavelmente com roupas da última moda são “importantes lições” sobre beleza. A Malhação ensina o que é a beleza humana sem proferir uma única palavra sobre a temática. A estratégia pedagógica é a repetição ostensiva, mostrando durante mais de 12 anos o mesmo padrão físico que se naturaliza como belo. Relacionado a isso acontecem também as “aulas” sobre etnia no Brasil, ao contratar apenas 5% de atores negros versus 40% brancos com cabelos louros e olhos claros. Nesse sentido, aquelas imagens compactuam com a ideologia do branqueamento de um país que nega ser racista, mas contraditoriamente quer ser branco, desconsiderando o resultado da miscigenação de três etnias – africana, indígena e européia.
Essas são apenas algumas nuances de um currículo que colabora com a formação do jovem consumidor, heterossexual, moralista e reacionário. Enquanto a escola age de maneira objetiva e impositiva, a mídia conquista eficácia através de uma ação pedagógica disfarçada de lazer. Diante da TV, crianças e adolescentes não se dão conta de que estão participando de um processo formador. Nesse sentido, precisa-se de pesquisas educacionais que se proponham a esclarecer essas pedagogias para que a escola e a família possam se posicionar com coerência crítica e atualização didática diante do contexto cultural da atualidade.

Bibliografia:

COSTA, Marisa Vorraber. Paisagens escolares do mundo contemporâneo. In. SOMMER, Luís Henrique; BUJES, Maria Isabel Edelweiss (Orgs.). Educação e cultura contemporânea: articulações, provocações e transgressões em novas paisagens. Canoas, Ed. Ubra, 2006.
SABAT, Ruth. Pedagogia cultural, gênero e sexualidade. Revista de Estudos Feministas, Florianópolis, UFSC. v. 9, n. 1, 2001. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-026X2001000100002> Acesso em: 26 jan. 2006.
SOUZA, Ana Carmita B. O currículo cultural da série Malhação: desvelando aspectos pedagógicos endereçados à juventude. 2007. Dissertação (Mestrado em Educação) – Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, 2007.